Michel Henry: a fenomenalidade da vida a partir dos pressupostos de Husserl e de Heidegger e aportes à clínica

Andrés Eduardo Aguirre Antúnez[1]

Julio César Menéndez Acúrio[2]

José Tomás Ossa Acharán[3]

Erika Rodrigues Colombo[4]

 

 

Resumo: A fenomenologia da vida, em Michel Henry, considera que a fenomenologia tradicional deixa na indeterminação os seus próprios pressupostos. Partindo de algumas das instalações de Nathan Sawaya – o grito, autorretrato, a música, o saxofone – que fizeram parte da exposição The Art of the Brick – 2016, mostraremos como é que Henry levanta essa indeterminação para emseguida mostrarmos a sua operacionalidade na clínica. A vida em seu aparecer originário revela-se como aquilo em que vivemos. É para esta vida que vivemos que a obra de Nathan Sawaya nos remete a nós mesmos como: eu sou o meu grito, eu sou esta dilaceração, eu sou a música que canto, eu sou o instrumento que toco. É à luz desse sentir que serão avaliadas as possibilidades de uma psicologia clínica a partir da fenomenalidade da afeção da vida que nos é dado sentir.

Palavras-chave: fenomenologia da vida, psicologia clínica, relação, comunidade, Legos.

 

Abstract: The Phenomenology of Life, of Michel Henry, considers that the traditional phenomenology leaves indeterminate its own assumptions. Departing from some of Nathan Sawaya’s installation – The Scream, Self Portrait, Sing, The Saxophone – that were part of the exhibition The Art of the Brick – 2016, we will show how Henry raises this indeterminacy to then show its operability in the psychological clinic. Life in its primary emergence reveals itself as what we live in. It’s for this life we live that the work of Nathan Sawaya reminds us of ourselves as: I am my cry, I am this tearing, I am the song I sing, I am the instrument I play. It’s in the light of this feeling that will be evaluated the possibilities of a clinical psychology from the phenomenal affection of life wich we are given to feel.

Key-words: Phenomenology of Life, clinical psychology, relationship, community, Legos.

 

 

 

Introdução

A fenomenologia da vida, em Michel Henry, considera que a
fenomenologia tradicional, leia-se Husserl e de Heidegger, deixa na
indeterminação os seus próprios pressupostos: à fenomenalidade de um
como do outro escapa a fenomenalidade do aparecer dos próprios
fenômenos porquanto esta se manifesta na pura imanência de seu advir
cuja processo antecede e escapa a qualquer transposição para outro
âmbito de manifestação que não seja o advir a si mesmo do fenômeno. Se
esta tese de Henry foi susceptível das mais diversas críticas também
abriu um vasto campo de investigações no âmbito da fenomenologia que
fazem todo o sentido na prática clínica. Para a primeira parte deste nosso artigo analisaremos os parágrafos 1 a 5 da obra Encarnação; a partir da obra O filho do reimostraremos a operacionalidade da fenomenologia da vida nas práticas clínicas.

Partindo de algumas das instalações Nathan Sawaya – O grito, autorretrato, a música, o saxofone – que fizeram parte da exposição que ocorreu  na Oca do Parque do Ibirapuera em 2016, mostraremos como é que Michel Henry levanta essa indeterminação em Husserl e em Heidegger para de seguida mostrar a sua operacionalidade na refundação da psicoterapia.

No 1º parágrafo da obra Encarnaçãovemos que o verdadeiro objeto da fenomenologia não é precisamente o fenômeno, o que aparece, mas o ato de aparecer e é esse objeto próprio da fenomenologia que a diferencia de todas as outras ciências (HENRY, 2014). Ou seja, se considerarmos o fenômeno angústia, mais do que a atender à angústia em si mesma (fenômeno já aparecido, presente a mim) será importante atender ao modo como ela aparece. E na Encarnaçãoa angústia aparece sempre ligada a uma possibilidade: a possibilidade de poder tocar ou não a mão do amante tocando a sua vida; a possibilidade de cair num abismo. E a possibilidade está sempre ligada a uma ação que posso ou não efetivar. Assim abre-se um campo novo e infinito de investigação e que consiste em compreender o modo como advêm a nosso viver sentimentos não apenas de angústia, mas também de prazer, de temor, de desespero, pois eles constituem-nos tão intimamente que não temos como nos libertar deles senão entrar no enredo da sua modalização afetiva. Mas para isso precisamos compreender o modo como esses sentimentos aparecem eles mesmos com ou sem nosso consentimento. E é por isso que segundo Henry:

Por mais decisivo que seja, o trajeto que levou a fenomenologia, através das análises prestigiosas de Husserl e de Heidegger, ao fenômeno mais originário da verdade só nos coloca diante de um problema. Que o puro aparecer, que a manifestação pura, que a fenomenologia pura seja a condição de todo fenômeno possível – situaçãoem que se mostra a nós e fora da qual nada se pode mostrar, de forma que não haveria nenhum fenômeno de nenhum tipo -, isso coloca sem dúvida esse aparecer no centro da reflexão fenomenológica como seu tema único ou seu verdadeiro objeto, mas ainda não diz de forma alguma em que consiste esse puro aparecer[5].” Mais à frente Henry afirma: “O aparecimento, a verdade, ou seu fenômeno originário, a manifestação, a revelação, a fenomenalidade são afirmadas sem que se diga em que consistem, sem que o problema seja posto. As pressuposições da fenomenologia permanecem totalmente indeterminadas (HENRY, 2014, p.42-43).

Se transpusermos esta questão do puro aparecer para as esculturas de Sawaya, veremos que o que ele quer dizer não é que as esculturas não existiam antes de as conhecermos, mas que o aparecer do grito se identifica de tal forma com a pessoa a quem ele aparece que a escultura aparece como sendo o próprio grito. Aparecer é ser. E quando olho a escultura o que eu vejo é o grito. É isso que me toca, me afeta, é isso que me comunica. Não é o ser escultura como brinquedo ou móbile. Para Henry, “o aparecer é tudo, o ser é nada. Ou melhor, o ser não é senão porque o aparecer aparece e na medida em que o faz” (HENRY, 2014, p.46). Aparece na medida em que se efetiva em seu viver, ou em seu advir a si mesmo. O aparecer funda o ser, o poder é do aparecer. A importância disso decorre de colocar a fenomenologia antes da ontologia para assinalar-lhe um fundamento seguro. A fraqueza e limite desse princípio é “sua indeterminação fenomenológica profunda” (HENRY, 2000, p.47), ou seja, nomear o aparecer sem dizer em que consiste.

E no segundo parágrafo Henry mostra como é que essa indeterminação se estende dos pressupostos aos “princípios da fenomenologia”. Henry retoma da fenomenologia histórica “A tanta aparência, tanto ser”, de Husserl (Escola de Marburg) e para escapar da dupla significação do termo aparência: o conteúdo do que aparece ou o aparecer enquanto tal, Henry formula um princípio que escapa dessas ambiguidades e afirma: “A tanto aparecer, tanto ser” (HENRY, 2000, p.45). E aproxima da visão do senso comum, que vê o ser e em seguida o aparecer, as coisas são e aparecem.

Do princípio da fenomenologia ‘ir às coisas mesmas’, Henry mostra que o que nos permite ir direto às coisas mesmas ou a via que conduz ao aparecer enquanto tal é o próprio em seu autoaparecer. Então o autoaparecer das esculturas trá-las a mim. Ou como diz Henry é o próprio aparecer enquanto aparece por si mesmo e em si mesmo, em seu autoaparecer que é a via de acesso às coisas, à obra de arte.

Uma pergunta precisa indica a posição metodológica de Michel Henry: “Qual é a necessidade de um método para ir ao aparecer e conhecê-lo, se é o próprio aparecer que vem para nós e se faz conhecer por si mesmo?” (HENRY, 2014, p.49). A escultura e o paciente diante de nós autoaparecem (isto é, afetam-nos) em nós e assim se fazem conhecer por si mesmos! Não estamos submetidos de imediato ao pensamento sobre uma coisa seja ela escultura ou outra, mas ao autoaparecer ou autoafecção em nós do outro (escultura ou paciente). Será então a este autoaparecer que a clínica precisa de prestar atenção.

No terceiro parágrafo Henry se refere ao preconceito oculto das pressuposições da fenomenologia de Husserl, a redução de todo “aparecer” ao aparecer do mundo. Henry se atém à fenomenalidade da intencionalidade e questiona a mesma, não a negando, mas procurando saber se existiria outro tipo de revelação além do fazer ver da intencionalidade dirigida ao exterior ou, em suas palavras, se existiria “uma revelação cuja fenomenalidade já não seria a do “lá fora”, desse pré-plano de luz que é o mundo?” (HENRY, 2014, p.58)

Henry mostra que não há resposta a essa questão na fenomenologia de Husserl e percebe que há “uma crise de extrema gravidade” (HENRY, 2014, p.58), nessa falta de resposta que não é imputável apenas a Husserl, mas à própria filosofia ocidental desde a Grécia. Reduzir o conhecer a uma mostração que põe tudo fora de si para assim se dar a ver. Para Henry conhecer é diferente de ver: “Quem já viu sua própria visão?” Nesse sentido, a visão não se vê, sentimo-nos ver. A crítica ao pensamento ocidental é ter colocado a representação abstrata em primeiro plano, de modo que Michel Henry coloca em primeiro plano justamente a autoafecção de si, a afetividade, a vida nos afetando na essência e invisibilidade. Daí a não-intencionalidade da vida, cuja intencionalidade é um modo da vida se manifestar.

 A intencionalidade tem para Henry um caráter redutor, por isso questiona se nossas experiências se deixariam encerrar no conhecimento que se confia ao ver e ao que nele é visto. Ou seja, se as nossas experiências não seriam, assim, apenas experiências teóricas. E que dizer de um saber ou conhecimento que pode nascer em nós, numa autoafecção que não é teórica, mas que é uma vivência, um sentimento, um afetar-se a partir de si diante do outro, da escultura, da arte, do paciente e de qualquer objeto do mundo? Para Henry este âmbito de fenomenalidade não pode ser esquecido como tem sido desde a Grécia.

Já a crise da fenomenalidade em Heidegger é vista no parágrafo 4 da obra Encarnação. Nele lemos que o aparecer do mundo designa a vinda do próprio mundo, de tudo que vem do exterior, quando surge a luz ou toda visibilização do horizonte, numa exteriorização da exterioridade enquanto tal, sendo essa, para Heidegger e no dizer de Henry uma fenomenalidade pura (HENRY, 2014, p.59).

Transpondo para a fenomenalidade da escultura de LEGO, diriamos que, em Heidegger, quando olho a escultura remeto em um primeiro momento a obra ao seu criador. Em Henry diria que eu sou apanhado pelo próprio grito e que essa fenomenalidade originária é originariamente estética; é uma instalação do próprio grito em meu viver. Este ser com os outros é originariamente afetivo, dá-se antes que eu possa orientar o meu olhar sobre ele, antes de debruçar-me sobre o afeto. E a Clínica só será possível se houver essa possibilidade de se ser afetado pela vivência do outro como se é pelo grito de Sawaya. Não é que eu viva o grito do escultor, o que eu experiencio é que o outro está a vivenciar um grito, ainda que eu não vivencie o seu grito.

E o tempo em que vivencio o grito não se processa como um contínuo passar do presente ao passado e ao futuro, como em Husserl, nem mesmo se processa, como em Heidegger, na temporalização da temporalidade.Deslizar por entre os fenômenos ou fazê-los entrar na temporalidade do tempo é diferente de entrar no enredo afetivo da vivência do grito e do desejo de mudança. Quando eu olho o grito e sou apanhado, afetado pelo grito, já houve mudança afetiva em mim; uma mudança irredutível a esses processos de temporalização do vivido. E é essa mudança afetiva que será vivida de modo imediato pelo paciente quando sente que seu grito ecoou em mim. A fenomenalidade da relação acontece como pathos, não no deslizar das fases da temporalidade estática. É importante o clínico atender a essa dimensão da fenomenalidade do fenômeno: a fenomenalidade do seu aparecer originário enquanto aparecer afetivo. A narrativa do pathose o eco que ela tem no outro é já mudança!

Como tantas crianças, Nathan Sawaya brincava com LEGO desde cedo, construindo casas, carros, animais. Mas, ao contrário da maioria delas, nunca parou de brincar com as já famosas peças, buscando, com determinação, criar formas e estruturas cada vez mais originais. Ele transformava os modestos tijolinhos de LEGO em material de arte, e criou obras que inspiram emoções, do assombro à admiração até o riso ou medo (LIL, 2016).

Retornando a Henry, as emoções vivem-se na fenomenalidade da carne, distinta da visibilidade da fenomenologia do corpo. A primeira tese da fenomenalidade da carne é “que nenhuma carne é susceptível de aparecer no aparecer do mundo” (HENRY, 2014, p.62), a carne do Si é a vida que brota em nossa autoafeção e nos faz movimentarmos.

As mudanças são mudanças no sentir; e só pode sentir um corpo dotado de sentidos. A esse sentir a fenomenologia chama “carne” para diferenciar do corpo objeto; Florinda Martins chama“corpo vivo”(MARTINS, 2006) a esse corpo que lhe permite experienciar-se na sua absoluta dignidade. “É pelo aparecer e tão só na medida em que o aparecer aparece que o que quer que seja é suscetível de ser. Nisso consiste a precedência da fenomenologia sobre a ontologia” (HENRY, 2014, p.64). Henry não exclui a reciprocidade de ser e aparecer.

 

No quinto parágrafo, Henry mostra que as ciências humanas usaram a linguagem como objeto de sua reflexão (linguística, crítica literária…). E são conhecidas as questões em torno da linguagem no âmbito da fenomenologia. Para Henry fenomenalidade e logos é uma mesma coisa. Henry (2014, p.66) afirma:

Depois de termos estabelecido como tal aparecer difere de tudo o que se mostra nele, constatamos sua impotência ontológica de fundo – sua incapacidade para pôr no ser aquilo que ele dá a aparecer. Ele descobre o ente, dizia Heidegger, mas não o cria.

Mas a partir de Michel Henry e Florinda Martins, podemos pensar a criação e transformação da vida: se eu sou o grito e se eu sou a clave musical ou se eu sinto que o outro é grito ou é clave musical é porque a vida só é comunicável pelo afeto. E apenas essa comunicação é geradora ou transformadora ou criadora – e nós somos essa obra de arte. A passagem do grito à tonalidade musical é uma passagem pela sensibilidade, pela estética. O mesmo ocorre em uma sessão psicoterapêutica. Quando estamos abertos às inúmeras expressões do outro, por exemplo, em sua aflição, eu sou essa aflição e sinto que o outro tem sua aflição é porque me comunica facetas de sua vida e as recebo via sensibilidade às suas afeções. Essa ação, por si só, é transformadora, pois o terapeuta acolherá, processará e doará uma intervenção, em gesto e/ou em linguagem oral, como um retorno de vida a vida do outro.

A manifestação do horizonte só me permite deslizar pelas coisas, não as cria. Toma-as como se fosse aos pedaços: a escultura reenvia ao escultor, aos LEGOS. Em tempos diferenciados, o grito remete à ressonância afetiva que a vida do grito teve em mim. Significa que eu, a minha vida, ainda que minha está em comunicação, pelo afeto com a vivência dolorosa daquele que está dilacerado pelo grito. Esta instalação (as esculturas são esteticamente instalações) da vida no paciente e depois em mim é criação originária, criatividade primordial – o nosso corpo é obra de arte – Marcelline diz ao filho do rei, José: “Você era como uma obra de arte, José, a aparência do que se dá através de suas formas perfeitas, eras a imagem do que acreditávamos e a certeza de nosso ser” (HENRY, 2014, p.219). E é essa criatividade originária que o escultor toma como importante para a sua própria criação.

O escultor muda ele próprio ao esculpir; Nathan Sawaya até mudou de profissão: cursou Direito na Universidade de Nova York, trabalhou como advogado e após vários anos lidando com muito dinheiro, advindos de fusões e aquisições de empresas, Nathan percebeu que preferia sentar-se no chão para construir obras de arte a ficar na mesa de reuniões negociando contratos. Assim, abandona o mundo jurídico e toma uma decisão, abraçar a carreira de artista (LIL, 2016).

Se pensarmos que cada paciente nos traz em sua narrativa uma polifonia e vários objetos do mundo como poemas veremos como se encarnam esses poemas. De contrário eles vagueiam sem densidade em um mundo ideal. Como diz Henry (HENRY, 2014, p.68) “apesar de aparecerem, elas [as palavras do poeta] permanecem privadas de realidade. O princípio da fenomenologia diz-se agora: “A tanto aparecer, tanta irrealidade”. A realidade que a linguagem traz pode ser tal como pode ser o poema, ilusória, ideal. E é nesse sentido que, de acordo com Henry, a linguagem é um revelador, mas “não há necessidade dela para desvendar uma carência que se enraíza na estrutura fenomenológica do próprio mundo” (HENRY, 2014, p.68). Poderíamos dizer que a linguagem encarnada não desvela nada, ela é.

Michel Henry desenvolve a experiência do outro numa fenomenologia da vida no parágrafo 47 da Encarnação. Mas antes de entrarmos nesta questão retomemos em síntese as questões atrás analisadas: 1-)a pressuposição fenomenológica do pensamento e da intencionalidade para Henry é a “Arquirevelação na Arquipassibilidade de um páthosinvisível” e portanto é a fenomenalidade desse pressuposto que é preciso atender (HENRY, 2014, p.347); 2-) a linguagem da aparência ganha densidade no Logos da vida ou na narrativa do pathos; 3-) o mesmo ocorre com o corpo que, na vida, deixa de ser corpo mundano para ser carne vivente; 4-) foi na fenomenalidade da vida que o trabalho do terapeuta pode acompanhar a corpopropriação daquilo que em seus pacientes aparecia como corpos desencarnados. Ora se até agora a carne vivente advém da vida “segundo o modo originário de fenomenalização próprio desta” vejamos agora como se dá também “o mesmo em relação à experiência do outro” (HENRY, 2014, p.347)

É possível que pessoas tão diferentes quanto um terapeuta e um paciente sejam capazes de se entenderem e de se comunicarem mutuamente se elas forem habitadas por uma mesma Razão (HENRY, 2014, p.347). Mas o que é ser habitado por uma mesma Razão? Que Razão é esta que dá razão ao ser-com?

O Da-sein é, em Heidegger, um “estar-com”. E Henry (2014, p.349) está de acordo que “não é porque, de fato, estamos com alguém, ou com muitos, que somos esse “estar-com”. O estar-com precede o estarmos sós ou com os outros. A solidão, por exemplo, só é possível sobre o fundo desse “estar-com”, como modalidade privativa deste. Jamais poderíamos sentir-nos sós se o outro não viesse a nos faltar, e jamais ele poderia faltar-nos se nós não estivéssemos primitivamente com ele” (HENRY, 2014, p.349).

Mas para Henry “o outro é o que eu próprio sou: outro eu” (2014, p.352). E o “Eu” é um experimentar-se a si mesmo ou uma ipseidade original que advém a si “na vinda a si mesma da vida em sua autorevelação patética – jamais na exterioridade de uma Ek-stase” ou de um ser-aí sem espessura ou interioridade. É difícil para nós olharmos para o universo como se ele não tivesse “nervura”! Uma expressão que ecoa a “membrura” do real de Merleau-Ponty e que vai no sentido da busca da vida daquilo que o horizonte ek-stático perde. Ver as coisas numa exterioridade absoluta é perdê-las completamente. Ou no dizer de Marilena Chauí é perder a sua nervura: a nervura do real (CHAUÍ, 2016). Para Henry a “nervura do real” é pathos. E apenas pathos é originariamente ser-com.

Chauí (2016) recupera Espinosa e Michel Henry começa a dialogar com Espinosa (1943). Para eles o corpo é corpo vivo, não faz qualquer sentido corpo objeto, nem faz sentido para o meu corpo nem para qualquer corpo. Daí a dificuldade em entender o absurdo da abstração da vida do corpo ou de qualquer corpo, para ver apenas a exterioridade. Se não houver corpo – com nervura – não pode haver a película transparente da exterioridade do corpo.

E é na busca da densidade da nervura do real, para lá da transparência da película, que Henry inverte o “aparecer do mundo” pela “autorevelação da Vida[6]” (HENRY, 2014, p.353). Adiante afirma que “Toda relação de um Si com outro Si requer como ponto de partida não esse próprio Si, um eu – o meu ou do outro – mas sua comum possibilidade transcendental, que não é outra senão a possibilidade de sua própria relação: a Vida absoluta” (HENRY, 2014, p.354). A Razão comum é então a vida. E se as nossas representações são sempre representações da vida, a mudança da nossa visão das coisas só se efetiva se ela passar pela transformação do afeto. E isso é mais do que uma hermenêutica ou interpretação.

“Se a razão é deixada a si mesma, a um puro objetivismo, à abstração calculadora da técnica moderna, pode afetar o coração do homem no que ele tem de mais próprio e ameaçar a sua humanidade” (HENRY, 2014, p.355). O psicopatólogo Minkowski (1927) dizia que o diagnóstico pelo sentimento ou por compenetração poderia nos informar tão bem, ou ainda mais, que o diagnóstico feito pela razão. Que o sentimento na presença do outro nos informa muito do outro. De acordo com Henry (2014, p.355) “O sofrimento, a alegria, o desejo ou o amor trazem em si um poder de reunir infinitamente maior que aquele que se atribui a essa outra “razão”, que, falando propriamente, não tem nenhum poder de reunir, na medida em que não se pode deduzir, dela, a existência de um único indivíduo, nada do que deve ser reunido numa comunidade”. A comunidade é a relação de viventes com a Vida (absoluta), intimamente interligados, sem qualquer “oposição” entre eles.

Na clínica é comum termos encontros encantadores, outros difíceis e até sem encanto, mas podemos ter sempre encontros sublimes, sagrados, verdadeiros encontros. A solidão de quem procura um terapeuta pressupõe uma comunidade que o antecedeu, e busca ligar-se-a alguém, nem que seja um estranho, mas com possibilidade de vir a ser familiar. Uma familiaridade para a qual aponta Henry quando finaliza este parágrafo 47 remetendo a relação de Sis transcendentais com a Vida absoluta para o laço religioso que, na Vida, religa (religio), conecta com o aspecto do encontro sagrado, divino, misterioso da Vida absoluta. É isso que muitos pacientes buscam: religar-se a Si pelo gesto do outro e por este religar-se à Vida absoluta! Religar-se à comunicação afetiva e à criação originária.

Michel Henry lembra que toda comunidade é por essência invisível. Invisível mas não irreal porquanto em nosso viver, sempre que tocamos o outro somos por ele irrecusavelmente tocados (MARTINS[7], 2017), não de uma forma abstrata ou conceitual, mas na modalidade de um afeto que acresce em nós. E é deste modo que Henry (2014, p.357) nos convida a refletirmos profundamente as relações terapêuticas, relações que começam entre estranhos, mas que podem se tornar familiares em sua possibilidade de uma “amizade ontológica” (SAFRA, 2004).

Em outro trabalho, desenvolvemos a tese da possibilidade da compreensão do humano a partir da fenomenalidade da alucinação e das suas necessidades terapêuticas. Em Michel Henry, a fenomenalidade da visão, do tato e da angústia é em tudo comparável com a fenomenalidade da alucinação e foi a partir dessa fenomenalidade que compreendemos o agir humano e, com ela, a essência da clínica  (ANTÚNEZ; MARTINS, 2016).  Michel Henry toma a alucinação como paradigma da fenomenalidade da vida. Nele, a fenomenalidade da alucinação situa-nos na vida afetiva, que é vivência da pura vinda a si da vida nas modalidades da audição, da visão, da angústia, do temor, e também da alucinação enquanto fenômeno suspenso na sua própria fenomenalidade. A alucinação aparece como fenômeno exemplar da vida, ainda que vivido em sentimento de pura insuportabilidade dessa prova afetiva da vida. E é a partir da experiência da insuportabilidade da prova de si da vida que se encontra a possibilidade de reversão do sofrimento em fruição. De modo que mostramos como há convergências entre a fenomenalidade da vida afetiva e as práticas clínicas (ANTÚNEZ; MARTINS, 2015). Assim, as relações nos implicam em comunidade.

A realidade da comunidade abre um domínio de relações paradoxais. “É assim que se pode estabelecer uma relação real entre Sis transcendentais que nunca se viram e que pertencem a épocas diferentes” (HENRY, 2014, p.357), tal como a relação de terapeutas jovens com crianças, de terapeutas jovens com pessoas mais idosas. De qualquer forma, para além das diferenças das idades, é uma nova concepção de interpessoalidade que trazemos a partir da obra Encarnação.

Considerações finais

Mostramos a importância da fenomenalidade da vida como aquilo em que vivemos quer para a saída das aporias da fenomenalidade da intencionalidade, em Husserl,quer da transcendência, em Heidegger. Mostramos ainda como é que a fenomenalidade da vida como aquilo em que vivemos nos possibilita ainda a renovação das psicoterapias. Exemplificamos essa possibilidade com o recurso às instalações de Sawaya. Destas, pelo exemplo de O gritovimos que mais do que pensarmos como aparece o grito – pensar a fenomenalidade do fenômeno sobre o próprio fenômeno e já não sobre a situação que pode ter despertado ou não aquela dor – demos atenção à vida que aparece como grito que somos, vivemos e conjuntamente comunicamos. Foi esse comovivo que nos interessou: sou grito, comunico grito e nessa comunicação algo de novo surge – criação viva – a vida e o mundo recriam-se. Esses são os fenômenos vividos, esses são fenômenos da vida: a vida como aquilo em que vivemos. Aquilo em que vivemos: vivemos, somos grito, somos clave de música, somos a dor, somos música, pois somos afetados pela dor e pela música.

De Heidegger mostramos a passagem da negatividade da fenomenalidade do inaparente[8], por ele enigmaticamente admitida pelo recurso da expressão Phänomenologie des Unssichtbaren(HEIDEGGER, 1985, p. 247) para a positividade da fenomenalidade do sentir. Em Michel Henry o invisível se prova ou experiencia como
sentimento ao passo que o inaparente de Heidegger é apenas
negatividade – inaparente. O inaparente e Nada, a nada conduz, muito menos para compreender o desespero.  O sentimento ainda que não se veja, sente, portanto é a sua prova antes de ser prova epistemológica, de modom a fazer prova de si mesmo sem recurso à representação para se tornar evidente. Fazendo referência à obra de Nathan Sawaya – O grito, o autorretrato, a música, o saxofone – vimos que a fenomenalidade de outrem remete a fenomenalidade da sua doação em mim como afeto. E foi a partir da fenomenalidade do afeto que repensamos a relação terapêutica. Vimos ainda da possibilidade de uma psicologia transcendental a partir da fenomenalidade dos sentidos e da dialética dos afetos, nos quais a linguagem, o pensamento, a imaginação, a alucinação, o comportamento, são todas, manifestações da vida.

Em Henry (2014) a vida se manifesta como afeto, todavia o afeto não é inócuo: há nele uma potencialidade afetiva que é de suma importância para a clínica e para a fundação da mesma a partir da fenomenologia da vida, é o que propomos operacionalizar. É essa potencialidade que habita qualquer afeto – o temor como a simpatia – que está em jogo na terapia: o terapeuta não pode sentir o que o outro sente, mas precisa aperceber que o outro está a sentir temor ou dilaceramento. Para Henry (2014) é inessencial a distinção entre normal ou patológico, essencial é não sucumbirmos às determinações do afeto.

No Romance O filho do rei (HENRY, 2014), a doença não é manifestada por ser sensível a tudo o que se passa no mundo, mas a doença é quando se sucumbe a essa sensibilidade. O psicoterapeuta a partir destas reflexões é aquele que ajuda o outro a não sucumbir. A ontologia decorre da fenomenalidade do nosso viver: a nossa vida e o nosso viver são originariamente compreendidos na e pela autoafeção da vida. Assim, mostramos que inerente à intencionalidade há uma fenomenalidade não intencional e inerente à fenomenalidade do ser-aí, há a fenomenalidade da ipseidade e que é a partir dessa fenomenalidade que os processos da vida se tecem; por isso é nela que também esses processos se alteram. Com Henry mostramos como operamos esta fenomenalidade no trabalho clínico para que o indivíduo resgate sua individualidade em comunidade. As obras de arte apresentadas são exemplo disso.

Agradecimentos

Agradecemos a Florinda Martins pelas orientações científicas e discussões na temática tratada neste trabalho em setembro de 2016 na Universidade de São Paulo.

 

Referências Bibliográficas

ANTÚNEZ, Andrés Eduardo Aguirre e MARTINS, Florinda. “Michel Henry: Sense of self and hallucination”. Estudos de Psicologia, Campinas, 33(3), pp. 425-430, 2016.

ANTÚNEZ, Andrés Eduardo Aguirre e MARTINS, Florinda. “Michel Henry: afetividade e alucinação”. Revista da Abordagem Gestáltica, 21(2), 177-183. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672015000200007&lng=pt&tlng=pt. Acesso em: 02 maio 2017.

 

CHAUÍ, Marilena. A nervura do Real. 2 volumes. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

HEIDEGGER, Martin. Unterwegs zur Sprache, Gesamtausgabe 15, Francfort, p. 247, 1985.

HENRY, Michel Encarnação – Uma filosofia da carne. (Trad. Carlos Nougué). São Paulo: É Realizações, 2014.

HENRY, Michel. El Hijo del Rey. (Traducción Sebastián Montiel). Granada: Editorial Nuevo Inicio, 2014.

HENRY, Michel. Incarnation – Une philosophie de la chair. Paris: Seuil, 2000.

LIL, P. V. Nathan Sawaya – The Arte of the Brick. Catálogo da exposição. Terminal 2 Inspiring Audiences, 2016.

MARTINS, Florinda. “L’autre: le corps vivant”. In: Lavigne, J.-F; Brohm, J.-M; Vaschalde, R. (dir.) Michel Henry. Pensée de la vie et culture contemporaine. Actes du Coloque international de Montpellier 2003. Paris: Beauchesne, 2006.

MINKOWSKI, Eugène. La schyzophrénie. Paris: Payot, 1927.

SAFRA, Gilberto. A po-ética na clínica contemporânea. Aparecida: Idéias e Letras, 2004.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[1]Psicólogo. Professor Livre-Docente do Departamento de Psicologia Clínica e Vice-Diretor do Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Membro do GT Fenomenologia, Saúde e Processos Psicológicos – ANPEPP. Co-coordenador do Núcleo de Pesquisas e Laboratório Prosopon. Líder do Círculo fenomenológico da vida e da clínica. Coordenador do Escritório de Saúde Mental da USP. Endereço Institucional: Av. Professor Mello Moraes, 1.721 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – CEP: 05508-030. E-mail: [email protected]

 

[2]Psiquiatra. Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon. Endereço Institucional: Rua Doutor Cesário Motta Júnior, 61 – Vila Buarque, São Paulo – SP, CEP: 01221-020.E-mail: [email protected]

 

[3]Psicólogo. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon. Endereço Institucional: Av. Professor Mello Moraes, 1.721 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – CEP: 05508-030. E-mail: [email protected]

 

[4]Psicóloga.Mestre em Psicologia Clínica pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. Membro do Núcleo de Pesquisa e Laboratório Prosopon. Endereço Institucional: Av. Professor Mello Moraes, 1.721 – Cidade Universitária, São Paulo/SP – CEP: 05508-030. E-mail: [email protected]

 

 

[6]Michel Henry usa o termo Vida com V maiúscula em suas últimas obras, quando trata dela como a vida transcendental. Na obra Eu sou a Verdade, Henry (2015) afirma que introduzir o conceito de transcendental “remonta à sua possibilidade mais interior, à sua essência. Ora, a possibilidade de nascimento, de algo como um pai ou um filho, não se vê. E isso porque esta possibilidade reside precisamente na Vida, que também não se vê. É por isso que chamamos igualmente a esta Vida vida transcendental. A vida “transcendental” não é uma ficção inventada pela filosofia: ela desiga a única vida que existe” (p.77).

[7]Comunicação pessoal em 23 de março de 2017.

[8]  M Staudigl (2012) em texto sobre a violência na obra de Patocka, discorre sobre o inaparente em Heidegger, como uma questão bem conhecida, mas nem sempre bem compreendida.
Jan Patocka: Liberté, existence et monde commun, Nathalie FROGNEUX (dir.); Cercle hermeneutique editeur,
Argenteuil, 2012, pp 70-71